terça-feira, 14 de setembro de 2010

Era como se todos nós, no momento em que visualizássemos sua chegada, soubéssemos que, se de mau humor ou muito espirituoso, Wederson quereria muito peitar ou humilhar qualquer um. Peitar, humilhar, esmurrar, matar as mais simples regras, e qualquer defensor delas.
- Gol, porra! Próxima!
- Se fuder. Não vou sair.
O time saiu da quadra, Renato não se moveu. Em meio ao rápido debate entre olhares, ao Mosquito, mais fraco, menor, só restou protestar, timidamente, com a voz em mutação.
-Tava esperando de rê. Catiagem...
A quadrinha que um dia fora a escola das melhores coisas nos idos anos sem lanrrauze - jogar bola e fingir ser macho - não mais existe. Pelo menos as traves não. Mas, formou honrados. Um deles, anos mais tarde, sublinhou alguns fatos, no meio do supermercado, com o filho no colo. Inclusive a derradeira de Renato.
- Coitado do Mosquito... O bicho virou crente, ainda mora lá na rua.
- E o Welerson, aquele cabuloso mei malinha?
- Wederson morreu.
- De rocha, como foi?
-Por causa de um boné, bota fé?
***
Anos depois da catiagem de Welerson
Mosquito, voz quase grossa, bigode ralo, boné oficial do San Francisco 49Ers balocado na Americanas. Z e r a d o. Conheceu o pai. À mãe respeita, mas ouve pouco. Tem um irmão em outra cidade que é polícia. Nunca saiu no tapa com ninguém.
Welerson, semana passada na Delegacia da Criança e do Adolescente (por pouco, DP, já tinha 17), Cyclone, Kenner e 38. Só.
- E aí doidin! Xô ver essa aba aí.
- Quiipô...
- Ouchi-marrapá!
Quando as mãos de Welerson se levantaram para testar a boina na cabeça, a blusa se levantou revelando a madeira do revólver, fazendo toda intenção ruim de Mosquito se transformar em capacidade de negociação.
- Bora bater rolo, doidin?
- Pô mano, na moral, minha mãe que me deu aí...
Welerson, por algum tempo nada ouviu. Naquele algum tempo, avaliou a opção de devolver, mas era vermelho e bordado SF grande na frente. E s p a r r a d o.
Mosquito, por sua vez, gostaria de saber o nome de São Judas Tadeu. Quem sabe fingir empatia, diminuísse o prejuízo.
- Essa Kenner ai é doida hein... Nunca tinha visto de solado dessa cor. Xo vê ai no meu pé, se cabe...
- Quêquituqué doidin, tá dôidé?
- Tu não queria bater rolo? Bora ver aí...
- Oouche, bater rolo no quê se o boné já é meu? Tu me deu, é meu, vacilão.
- Que dei o quê? Pô, dá o boné ai de volta véi...
-Tá catiando? Deu, tá dado. Sai fora...
***
- Então foi o irmão que matou?
- Dizem. Até hoje ninguém sabe. Também naquela época o cara já tava envolvido com várias paradas também. Tenho que ir, mano. O moleque tá todo cagado. A gente se vê.
- Falô.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O que mata - Parte 1

Descia o sol fazendo da vila, aos poucos, breu frio. Não mais havia passos nem pássaros. Calou-se a ruela. Quem bradou por último foi a cancela velha de madeira já apodrecida. Graças a Deus.

- Graças a Deus mamãe, a senhora chegou. A bença?
- Tá abençoada, minha filha. Ai como to cansada...

Em cima do fogão, deixou cair uma sacola branca de plástico. Vagarosamente se dirigiu ao sofá, averiguando a ordem das poucas coisas que ainda lhes restavam. Apoiou os punhos na beira, e devagar deixou o corpo cair. As pernas cinzentas esticadas diziam que a caminhada havia sido árdua, mas enfim descansava o corpo. A cabeça não.

- Ai minha filha hoje eu não consegui nada, nada. Sabe até onde eu fui hoje? Até do outro lado da ponte quase no Centro já...
- Foi mãe?! Por isso demorou...
- Não sei como vai ser amanhã.
- Não preocupa não mamãe... Amanhã tem macarrão na escola. Eu li na parede.
- Ô minha filha... Tá tão difícil... Hoje eu fui lá onde a Jô falou, que precisavam de gente pra trabalhar. Quando eu cheguei lá, o homem nem deixou eu falar. Me olhou com uma cara... Disse que era melhor eu ir embora. Num tinha nada pra mim lá. Desgraçado...
- Mas só olhou, mamãe?
- Só me olhou. Aquele desgraçado... Ouvi alguma coisa quando virei as costas. Macaca. Mas Deus vai me ajudar. Inda passei na feira, ver o que tinha. Consegui um restim de comer. Quase não encontro nada.
- Hoje eu quase consegui tirar 10 no ditado, eu errei só duas palavras. Só duas... Sucesso é com dois esses! Essa era difícil também... E também errei lu... Mãe? Não chora mãe...
- Aquele desgraçado...
- Não chora...
- Escuta filha: nunca, nunca deixe ninguém fazer o que fazem comigo, nunca. Foi porque eu não estudei... Olha, pegue a comida em cima da mesa. E também traz a vela pra cá, que num consigo ver onde tá nada. Como tô cansada...
Dentro da sacola, uma amassada embalagem de alumínio, semi terminada, semi aberta, semi cheia de comida. Sentada ao lado da mãe a menina põe com cuidado a vela acesa na parte de madeira do braço do sofá. Abre a sacola.
- Credo mãe, tá com formiga.
- Desgraça...
- E agora?
- Apaga a vela, minha filha. Nosso problema é a luz.
- Luz! Errei essa também.
- Come, minha filha, come.