terça-feira, 26 de outubro de 2010

Baú

E desde que Baú é Baú, as pessoas estão aí. Será que seria Baú, se não tivesse quem pretendesse lotá-lo? Duvido. As pessoas confirmam o que o Baú é mesmo. Mas como somos mesmo cada qual um dedo de um pé infinito, entendemos que o Baú é mesmo o problema de seu cada qual. O que cada qual entende o que é Baú pelo menos.
Sei que na espera infinda de que o motor das pessoas - ou do Baú - ligasse, para que depois de uma hora e meia nós ligássemos a bunda no sofá televisivo, adentra um senhor gordo, trazendo a necessidade na cara, e exigindo qualquer quinhão. Não é de hoje que se vê isso, sabemos.
Roupas de tempo, sujeiras também. Grisalho, corpulento, blusa aberta até a metade, barbudo, cabelos lisos quase pelos ombros, de boa fala. Soa falso. É isso mesmo.
O Baú se sente nu. Tenta não ver quem lhe solicita qualquer trocado ou vale transporte que Deus abençoe. Filhos doentes, o remédio caro, esposa morta, não tem como arrumar trabalho, fome. Não é de hoje que se vê isso, sabemos. Porém, gordo. Soa falso.
Com as mãos por cima da catraca, ninguém mais se move, ninguém mais se queixa. O baú tá nu, de vergonha. Não basta estar no túmulo que se tornara o dia. Tem-se que ficar nu diante da mão estendida. Mas, “Não dê esmola, dê cidadania”. Ufa! Ter de andar até aquela mão para depositar tão poucos centavos, quando aqui em meu bolso, me torno cidadão? Que fiquem! Passava a mão nos cabelos como quem desesperado. Uma bermuda e um mocassim surrados. Mas as pessoas que ali param, exigindo do baú, visualmente falando, o fazem com uma bandeira enfiada no cume da razão, sem brincadeiras. Soa falso, o gordo.
Depois de ver que não sensibilizara nenhum e nenhuma, o senhor citou com o cobrador um comentário sobre como é a vida fora da imploração. Disse que já viu muita coisa. Que esse lugar chamado Brasil, não é lugar pra se viver não. Bom mesmo era lá fora. Soava falso, o gordo barbudo.
E quando achávamos que já eram murmúrios finais de um gordo louco, para que todos voltássemos a respirar aliviados, já que a miséria alheia iria desistente para longe das vistas ou apenas para dentro, cobrindo nossas vergonhas, o velho nos violentou.
Abaixou o rosto sobre a roleta e aos berros graves, ameaçou partir voluntariamente para a onipresença. Fez descer lágrimas e soar tossidos tuberculosos. E todos ameaçaram até se entreolhar, pois aquilo já passava dos limites da calmaria bauzística de todos os dias. Soava falso, aquele velho.
Quando pensamos que a nossa imobilidade per-si-só trataria de dissipar nossa tragédia, ou o ligar de nosso motor, eis que faz menção de se levantar a nossa salvadora. Aquela que nos salvou da culpa de deixar morrer seca uma mão estendida, aquela que fundou nossa identidade, acendeu nossa alma, nossa, do Baú.
Antes de se levantar, ela fechou a Bíblia, colocou-a cuidadosamente no acento ao lado e de dentro dela sacou uma algibeira, e de lá qualquer tostão. Via-se a felicidade no rosto de cada um, acompanhando o movimento de nossa salvadora. Ela se levantou, deu cinco passos, alcançou a mão do velho, onde o abençoou com três moedas pesadas. O velho transformou toda tragédia mórbida em um sorriso envergonhado e vivo, e disse que a senhora era uma alma salva. Olhou para as moedas e em belo tom agradeceu disfarçando uma vontade de rir. Velho escroto.
Agora sim, a cena está pronta pra sair ruidosamente rumo ao engarrafamento. E antes de partir o velho agradeceu sorrindo as lágrimas que ainda pouco estavam ali. Com a mão pesada mandou beijos para o Baú, olhou para o motorista, não conseguiu disfarçar, deu uma sonora gargalhada que fez sumir o barulho do nosso motor.
Surpreso e sem saber o que sentia, o baú se viu de novo nu. Uma enorme e vermelha vergonha de ser o que é, de ter um motor e não poder se mexer pra canto nenhum. Nos levaram 3 tostões pesados. O velho desceu as escadas sorrindo, fazendo chacoalhar as moedas na palma da mão.
A nossa heroína sentiu que a outra face dada é muito mais sensível e não merecia aquele beijo. Enquanto o velho apontava o dedo para ela e ria sacanamente do lado de fora, ela apenas balançava a cabeça como quem não esperava aquele golpe trágico. O Baú começou o movimento de apenas ir, sem destino aparente, para os olhares tristes da janela. Olhares esses que dizem a maior tristeza que cada qual é capaz de supor: “Eu sou o Baú, eu não me mexo, eu só espero”. Olhares que antes de viajar para dentro dessa verdade aterrorizante, viram o velho sorrir, abaixar a cabeça em reverência à platéia, despir sua maquiagem e se apresentar com um sorriso: Eu sou a democracia, meu querido Baú!
Sabe aquela vergonha de aplaudir sozinho, no momento em que não se devia?
Pois é...

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Era como se todos nós, no momento em que visualizássemos sua chegada, soubéssemos que, se de mau humor ou muito espirituoso, Wederson quereria muito peitar ou humilhar qualquer um. Peitar, humilhar, esmurrar, matar as mais simples regras, e qualquer defensor delas.
- Gol, porra! Próxima!
- Se fuder. Não vou sair.
O time saiu da quadra, Renato não se moveu. Em meio ao rápido debate entre olhares, ao Mosquito, mais fraco, menor, só restou protestar, timidamente, com a voz em mutação.
-Tava esperando de rê. Catiagem...
A quadrinha que um dia fora a escola das melhores coisas nos idos anos sem lanrrauze - jogar bola e fingir ser macho - não mais existe. Pelo menos as traves não. Mas, formou honrados. Um deles, anos mais tarde, sublinhou alguns fatos, no meio do supermercado, com o filho no colo. Inclusive a derradeira de Renato.
- Coitado do Mosquito... O bicho virou crente, ainda mora lá na rua.
- E o Welerson, aquele cabuloso mei malinha?
- Wederson morreu.
- De rocha, como foi?
-Por causa de um boné, bota fé?
***
Anos depois da catiagem de Welerson
Mosquito, voz quase grossa, bigode ralo, boné oficial do San Francisco 49Ers balocado na Americanas. Z e r a d o. Conheceu o pai. À mãe respeita, mas ouve pouco. Tem um irmão em outra cidade que é polícia. Nunca saiu no tapa com ninguém.
Welerson, semana passada na Delegacia da Criança e do Adolescente (por pouco, DP, já tinha 17), Cyclone, Kenner e 38. Só.
- E aí doidin! Xô ver essa aba aí.
- Quiipô...
- Ouchi-marrapá!
Quando as mãos de Welerson se levantaram para testar a boina na cabeça, a blusa se levantou revelando a madeira do revólver, fazendo toda intenção ruim de Mosquito se transformar em capacidade de negociação.
- Bora bater rolo, doidin?
- Pô mano, na moral, minha mãe que me deu aí...
Welerson, por algum tempo nada ouviu. Naquele algum tempo, avaliou a opção de devolver, mas era vermelho e bordado SF grande na frente. E s p a r r a d o.
Mosquito, por sua vez, gostaria de saber o nome de São Judas Tadeu. Quem sabe fingir empatia, diminuísse o prejuízo.
- Essa Kenner ai é doida hein... Nunca tinha visto de solado dessa cor. Xo vê ai no meu pé, se cabe...
- Quêquituqué doidin, tá dôidé?
- Tu não queria bater rolo? Bora ver aí...
- Oouche, bater rolo no quê se o boné já é meu? Tu me deu, é meu, vacilão.
- Que dei o quê? Pô, dá o boné ai de volta véi...
-Tá catiando? Deu, tá dado. Sai fora...
***
- Então foi o irmão que matou?
- Dizem. Até hoje ninguém sabe. Também naquela época o cara já tava envolvido com várias paradas também. Tenho que ir, mano. O moleque tá todo cagado. A gente se vê.
- Falô.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O que mata - Parte 1

Descia o sol fazendo da vila, aos poucos, breu frio. Não mais havia passos nem pássaros. Calou-se a ruela. Quem bradou por último foi a cancela velha de madeira já apodrecida. Graças a Deus.

- Graças a Deus mamãe, a senhora chegou. A bença?
- Tá abençoada, minha filha. Ai como to cansada...

Em cima do fogão, deixou cair uma sacola branca de plástico. Vagarosamente se dirigiu ao sofá, averiguando a ordem das poucas coisas que ainda lhes restavam. Apoiou os punhos na beira, e devagar deixou o corpo cair. As pernas cinzentas esticadas diziam que a caminhada havia sido árdua, mas enfim descansava o corpo. A cabeça não.

- Ai minha filha hoje eu não consegui nada, nada. Sabe até onde eu fui hoje? Até do outro lado da ponte quase no Centro já...
- Foi mãe?! Por isso demorou...
- Não sei como vai ser amanhã.
- Não preocupa não mamãe... Amanhã tem macarrão na escola. Eu li na parede.
- Ô minha filha... Tá tão difícil... Hoje eu fui lá onde a Jô falou, que precisavam de gente pra trabalhar. Quando eu cheguei lá, o homem nem deixou eu falar. Me olhou com uma cara... Disse que era melhor eu ir embora. Num tinha nada pra mim lá. Desgraçado...
- Mas só olhou, mamãe?
- Só me olhou. Aquele desgraçado... Ouvi alguma coisa quando virei as costas. Macaca. Mas Deus vai me ajudar. Inda passei na feira, ver o que tinha. Consegui um restim de comer. Quase não encontro nada.
- Hoje eu quase consegui tirar 10 no ditado, eu errei só duas palavras. Só duas... Sucesso é com dois esses! Essa era difícil também... E também errei lu... Mãe? Não chora mãe...
- Aquele desgraçado...
- Não chora...
- Escuta filha: nunca, nunca deixe ninguém fazer o que fazem comigo, nunca. Foi porque eu não estudei... Olha, pegue a comida em cima da mesa. E também traz a vela pra cá, que num consigo ver onde tá nada. Como tô cansada...
Dentro da sacola, uma amassada embalagem de alumínio, semi terminada, semi aberta, semi cheia de comida. Sentada ao lado da mãe a menina põe com cuidado a vela acesa na parte de madeira do braço do sofá. Abre a sacola.
- Credo mãe, tá com formiga.
- Desgraça...
- E agora?
- Apaga a vela, minha filha. Nosso problema é a luz.
- Luz! Errei essa também.
- Come, minha filha, come.